quinta-feira, 17 de março de 2011

O Jusnaturalismo e o Juspositivismo

Original: Tiago Anton Alban (Universidade Salvador)
www.facs.br/revistajuridica/edicao.../corpodiscente.htm
Adaptação: Danillo de Sousa Macêdo 



1- INTRODUÇÃO

É comum na doutrina a separação da escola juspositivista da escola jusnaturalista. Apesar de terem, em essência, métodos distintos de abordagem interpretativa, estas não são, de forma alguma, incomunicáveis entre si. Este trabalho busca abordar uma visão integrada das duas escolas, defendendo que não se deve pensá-las de forma totalmente antagônicas, mas sim como suportes uma da outra.

2- DO IDEALISMO

Antes de adentrarmos na questão do juspositivismo, é mister que retrocedamos na história de forma a contemplar aquele que forneceu a base científica na qual o juspositivismo está solidificado: o idealismo.

O idealismo surge na Grécia com o filósofo Platão. Através de um conto denominado “O Mito da Caverna”, Platão afirma a existência de dois mundos distintos: o mundo material, empírico, no qual os homens habitam, e o mundo das idéias, abstrato, composto pela essência das coisas que conhecemos. O mundo material é um mundo falso, de forma que somente reproduz, como cópias, as idéias originais de tudo o que existe no mundo ideal, estas, sim, verdadeiras. O conto de Platão se passa dentro de uma caverna, onde habitam seres humanos que jamais viram o mundo exterior, estando toda a sua existência a contemplar apenas as sombras e ouvir os murmúrios daqueles que passam do lado de fora. Esta sobrevida de seres humanos, acorrentados na escuridão, é uma referência à ignorância do homem, que apenas através do conhecimento, ao sair das trevas e adentrar na luz, é capaz de conhecer a verdade, que habita o mundo das idéias. Além disto, Platão afirma que a ignorância leva o homem a cometer o mal, sendo o mundo das idéias, portanto, o mundo do bem e da ética, ciência que vamos abordar mais adiante neste trabalho.

A idéia de um mundo abstrato e composto pela essência das coisas seria trabalhada futuramente por Husserl e sua fenomenologia. Através da redução eidética (do grego eidos = idéia), o homem é capaz de conhecer a própria essência de seu mundo cognoscitivo. Não há, utilizando o exemplo preferido da doutrina, uma mesa universal, ou qualquer objeto que exista em sua própria essência. Assim como não existe um Código Civil, ou uma Constituição Federal, mas apenas reproduções textuais de seus conceitos, que habitam o mundo abstrato, a essência das coisas habita a própria mente humana; por isto, não é necessário que exista uma mesa na minha frente para eu ter a idéia do que vem a ser uma mesa, que pode ser de diversas formas: redonda, quadrada, de três ou quatro pernas, etc. É necessário, entretanto, que exista um contato prévio pelo homem, no mundo fáctico, com uma amostra deste objeto ideal, construído na mente humana, pois o ser humano não pode ter a idéia de algo que não conhece[1][1], como bem explicita Ludwig Wittgeinstein ao afirmar que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, noção que Hans-George Gadamer irá utilizar como base para a sua hermenêutica filosófica, juntamente com as considerações de Husserl e seu discípulo Martin Heidegger.

O idealismo platônico iria séculos depois desembocar no idealismo alemão, que teve na figura de Immanuel Kant o seu fundador. Kant defendia, assim como Platão, um mundo ideal e fictício, regido por normas jurídicas, as quais garantiriam a liberdade individual de cada pessoa. Através deste mundo idealizado, o ser humano poderia pautar suas ações e viver em paz através da obediência às normas, que eram presumivelmente a vontade de todos. A partir desta noção kantiana do ordenamento jurídico, Hans Kelsen lapida ainda mais o conceito de norma jurídica, o que terminará por nortear toda a sua principal obra: a Teoria Pura do Direito. Kelsen irá metodizar ainda mais a obra de Kant, conferindo-lhe uma maior concretude e aplicação empírica, ampliando os seus horizontes, da mesma forma que Émile Durkheim confere método a Auguste Comte, na Sociologia, e Emilio Betti à Schleiermacher, na Hermenêutica, por exemplo.

3- DO POSITIVISMO JURÍDICO E DA SEGURANÇA JURÍDICA

O juspositivismo, ou positivismo jurídico, nasce com o precípuo escopo de garantir a segurança jurídica da sociedade. Através de um sistema regido por normas jurídicas, atos de disposição criados por um legislador, o homem seria capaz de atingir o mundo ideal proposto por Kant, de forma concreta. O ordenamento jurídico não é senão este mundo perfeito e abstrato, que tem na lei posta a forma de o homem, ser imperfeito que é, conseguir agir sob a égide do ordenamento, que o serve como guia e modelo de conduta a seguir.

Mas por que é necessário este mundo ideal? Não poderia o homem simplesmente viver em sua condição natural, sem ordenamentos ou nada do tipo? Para que necessitamos de uma segurança jurídica? Para entender este ponto, é necessário que voltemos às teorias que explicam a formação da sociedade; mais especificamente a teoria contratualista.

Thomas Hobbes acreditava que o homem é mau por natureza. O homem é um ser irrequieto e instável, que vive em uma eterna luta contra seu semelhante. Nas palavras de Hobbes:

Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. A guerra que é de todos os homens contra todos os homens.” (HOBBES, 2004, pg. 98)

            Esta situação caótica, que o autor chama de “a guerra de todos contra todos”, revela a natureza vil e desconfiada do ser humano, que acaba por se transformar no algoz - no lobo - do seu próximo semelhante. Para sair deste estado de natureza, é necessária a presença de um ente, o Estado, que o autor vai nomear de “Leviatã”, em alusão a um grande monstro marinho retratado na Bíblia[2][2]. Esta condição humana ainda é vista até hoje, pois mesmo com a presença do Estado, que presumivelmente é o responsável por garantir a segurança de todos, o homem ainda não confia no seu próximo: o que são as grades, alarmes e câmeras de segurança, por exemplo, senão uma proteção[3][3] que o homem cria ao seu redor por temor e desconfiança do outro?

Rousseau refuta Hobbes e afirma que o homem não é mau por natureza. Entretanto, a presença de um Estado que garantisse a segurança jurídica de todos é essencial para a evolução:

Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça todavia senão a si mesmo e fique livre como antes. Tal é o problema fundamental que resolve o contrato social.” (ROUSSEAU, 2005, pg. 31)

             Através da troca de sua liberdade natural por uma liberdade jurídica, concedida por este ente superior, o homem seria capaz de viver em harmonia com seus semelhantes, em sociedade. O juspositivismo busca senão a consolidação deste ideal de segurança jurídica social, através da aplicação das normas de conduta.

4- DO JUSNATURALISMO

Em contrapartida, o jusnaturalismo dirige fortes críticas ao positivismo jurídico. Fundamentado sobre uma base abstrata, que estabelece ser o homem regido por leis universais naturais, ou  até mesmo divinas, como pregava Tomás de Aquino, São Paulo e Santo Agostinho, por exemplo, o jusnaturalismo acusa o positivismo jurídico de ser um mero aplicador da “letra fria da lei”. Esta posição é de qualquer sorte, uma inverdade. O positivismo jurídico não está na ponta extrema ao jusnaturalismo. Muito pelo contrário, aquele nasce baseado em ideais deste.

O que foi a Magna Carta[4][4], de João Sem-Terra? O que foram as Declarações dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, o Bill of Rights, da Revolução Inglesa, e a Declaração de Independência, da Revolução Americana, senão a positivação, a concretização dos ideais abstratos de justiça e igualdade naturalistas? O juspositivismo, longe de refutar os ideais naturalistas, confere método a estes. Através da criação de normas jurídicas, o homem dispõe de um método empírico e concreto para atingir o mundo ideal imaginado pelo jusnaturalismo. É certo que a Hermenêutica e a Sociologia Jurídica já provaram que cada caso deve ser analisado em sua individualidade. Não vamos adentrar aqui no campo axiológico e questionar se a norma é justa ou injusta, até mesmo porque Kelsen afastou a possibilidade de assim a considerar, ao estabelecer que ela deve ser vista, apenas, como válida ou inválida, ou seja, de acordo ou não com o ordenamento. O que está em questão aqui é o fato de que, além do jusnaturalismo ter oferecido a base racional para o positivismo jurídico, este, de certa forma, confere uma maior solidez àquele, na maneira em que consolida seus ideais em um sistema mais acessível e próximo ao homem.

É claro que o positivismo jurídico também tem um quê de abstração. O ordenamento jurídico é, por si só, abstrato. A norma hipotética fundamental de Kelsen, cabeça de todo o sistema, é suposta, não existindo fisicamente. Vimos no início que não existe um Código Civil, ou uma Constituição Federal, ou qualquer que seja o compilamento de leis, no mundo fáctico. O que existem são reproduções destes em plataformas de texto; a essência da coisa está na própria mente humana.

O jusnaturalismo também se baseia em ideais éticos e morais do ser humano, que presume serem imutáveis e universais, válidos para todos os homens. Todavia, um dos maiores expoentes da ética, Aristóteles, dizia que os valores do homem mudam com o tempo. A evolução social acaba por transformar os conceitos morais, adequando-os à sua época. Ora, se o próprio objeto da ética, a conduta moral, é mutável, não é possível que se diga que a ciência seja imutável, apesar de existirem doutrinadores de escol, como Adolfo Sanches Vásquez, que preferem adotar uma abordagem separada para a ciência e o objeto (VÁSQUEZ, 1987, pg. 23). Habermas irá tomar um caminho parecido, ao dizer que a ética é construída pelo debate social, no dia-a-dia de um povo, não podendo ser congelada no tempo; fenômeno que denominou “a ética do discurso” (HABERMAS, 1989).  A ética seria, portanto, metamórfica, assim como a moral, devendo se adequar ao pensamento do homem na época e local onde vive.

Cícero constatou que “a própria natureza implantou na mente humana a idéia de Deus”. Ora, e o que é Deus, senão a personificação da ética? Deus é fiel, honesto, justo, bondoso, onipresente. Deus é o ser perfeito que serve como referência ao homem. Mas, se a própria natureza implantou na mente humana a idéia de Deus, e se a natureza é mutável (não as leis naturais, mas o processo de evolução, como o das espécies, por exemplo, tal qual diria Darwin), a idéia de Deus, de uma ética universal e superior, também é. É por este motivo, dentre outros, que existem diversas religiões em todo o mundo, pois cada povo tem uma visão diferente de valores e ideais, visto que vivem em situações diferentes.

Kant, quando idealizou um mundo perfeito, buscou revelar algo em que ele acreditava piamente: a existência de Deus. Através da explicação científica de um sistema abstrato e invisível aos olhos, Kant estaria legitimando, também, a presença de um ser abstrato e perfeito entre nós.

5- CONCLUSÃO

Vimos que o positivismo jurídico, antes de ser mero aplicador da lei, consegue acompanhar a evolução social. A qualquer momento se pode mudar o texto de um artigo, ou a própria Constituição, de forma a fornecer um suporte concreto aos desejos do povo (segundo o conceito de praeter legem = os costumes influenciam o próprio Direito posto). Não podemos colocar estas duas escolas distantes uma da outra, pois elas se comunicam perfeitamente. O jusnaturalismo oferece base ao positivismo, que busca adequar seus ideais ao mundo empírico; quando este falha, recorremos ao primeiro, que foi de onde emanou a norma, para conferir justiça. Ambos estão intrinsecamente conectados, de forma a oferecer suporte um ao outro. A separação destas duas escolas em pólos opostos não passa, a fortiori, de uma mera ilusão.

6- REFERÊNCIAS

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 22. Ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. Ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

PLATÃO. A república. São Paulo: Martin Claret, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HOBBES, Thomas. O leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2004.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2005.

VÁSQUEZ, Adolfo Sanches. Ética. 10. Ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1987.

Nenhum comentário:

Postar um comentário